"(...) mas o que é o corpo?
meu corpo feito de carne e de osso
esse osso que não vejo
maxilares costelas
flexível armação que me sustenta no espaço
que não me deixa desabar
como um saco vazio
que guarda as vísceras todas
funcionando
como retorta de tubos
fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento e as palavras e as mentiras
e os carinhos mais doces
mais sacanas
mais sentidos
para explodir como uma galáxia de leite
no centro de tuas coxas
no fundo da tua noite ávida
cheiro de umbigo e de vagina
graves cheiros indecifráveis
como símbolos do corpo
do teu corpo
corpo que pode um sabre rasgar
um caco de vidro
uma navalha
meu corpo cheio de sangue
que o irriga
como a um continente
ou um jardim
circulando por meus braços
por meus dedos
enquanto discuto, caminho
lembro
relembro
meu sangue feito de gases
que aspiro dos céus da cidade estrangeira
com a ajuda dos plátanos
e que pode
por um descuido
esvair-se
por meu pulso aberto
meu corpo que deitado na cama
vejo
como um objeto no espaço
que mede 1 metro e 70
que sou eu
essa coisa deitada
barriga pernas pés
com cinco dedos cada um
por que não seis?
joelhos e tornozelos
para mover-se
sentar-se
levantar-se
meu corpo de 1 metro e 70
que é meu tamanho no mundo
meu corpo feito de água e cinza
que me faz olhar Andrômeda, Sirius, Mercúrio
e me sentir misturado a toda essa massa de hidrogênio e hélio
que se desintegra e reintegra
sem se saber pra quê
corpo
meu corpo
corpo
...
pulsando há 45 anos
este coração oculto
pulsando no meio da noite
da neve e da chuva
debaixo da capa
do paletó
da camisa
debaixo da pele
da carne
combatente clandestino
aliado da classe operária
meu coração de menino(...)"
in Poema Sujo, Ferreira Gullar
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