viernes, 20 de agosto de 2010

A bem amada

Não é novidade que se apaixonar deteriora nossas capacidades de raciocínio. Tomados da febre da paixão, nos vemos vulneráveis, encobertos pela fina película da ilusão, que transforma o mundo numa aventura em tons de rosa. Precipícios serão trespassados sem o cuidado devido, pois teremos asas para atravessá-los. Recusaremos o alimento, a água, o sono: de nós nascerá a força dos semideuses. Assim, percorreremos a maratona do amor, impávidos e colossais. Impávidos? Só um pouquinho. Ontem mesmo a bem amada se olhava no espelho, feliz. Afundadas as olheiras. Reunindo forças, galgou as escadas que a levaram à depilação, e depois, à manicure. No final de um dia de trabalho, que nem foi tão longo assim, tinha a impressão que cairia inanimada no meio da rua. E se lhe perguntassem: você está bem? Responderia: Melhor impossível. Estou feliz da vida (medindo a febre na testa). Os calafrios lhe acompanharam durante a noite: seria pneumonia? Hepatite? O que fosse, parecia grave. Não uma gripezinha, uma irritação alérgica do pó do ar-condicionado. Mas calamidades, epidemias, o sarampo que contagiou dois brasileiros na Argentina, ainda que a bem amada, há pelo menos dois anos, não tenha pisado na Argentina. Arrastando os pés, chegou no escritório. Trabalhar, que é bom, não lhe interessava. A primeira ligação que fez foi para ele. E ele estava numa reunião. Restou baixar a cabeça e terminar aquele relatório, ir ao banco pagar as contas, fazer o balanço do mês, preocupada, muito preocupada, com o que ele iria dizer no próximo telefonema, com que voz abriria as portas da conversação, e se não dissesse o “querida” de sempre, o que significaria? A qualquer momento, poderia não querer mais. A todo instante, seria o fim, enquanto ele não estivesse na frente dela e ela pudesse acarinhar-lhe os cabelos, fazer cara de manhosa, banhar-lhe o rosto de beijos, encontrar nele a temperatura ideal do próprio corpo, até então atacado por irregulares 37,8°, 37,9°, 36,1°. Não é novidade que também o corpo também se deteriora na paixão. Sai da normalidade. Da regra, do hábito, do funcionamento geral. Não, não é a doença. Não, não é a razão.É um estado mais fundo, e de saúde total. O lugar do apaixonado é o paraíso. Terrenal.