lunes, 25 de julio de 2011

Cygnus Atratus*


Para ler ouvindo a Suíte do Lago dos Cisnes, de Tchaikowsky.


É comum a gente dizer: “nem me passou pela cabeça uma coisa dessas”.

Um buraco no ventre, aberto a caco de espelho, pode não matar ninguém. Este buraco, aberto junto ao umbigo, dá a ideia de que quem o fez procurava ali alguma coisa. Procurava ali rasgar a alma, botar a alma para fora. Parece que os instintos, os desejos, que moram na alma, raramente passam “pela cabeça”. Me disse um amigo que adoro: “estes passam, por exemplo, pelo umbigo”. A cabeça, o pensamento, pouco registra das vontades mais fundas da gente.
O vulto que entra no palco tem os jeitos de cisne e é mulher. O costume envolve e cola no corpo, braços e mãos, e é negro. As plumas soltam no ar no instante do giro. As pernas volteiam, também no ar. O pescoço, de cisne e mulher, é altivo, assim como a cabeça, posta em seu lugar: em cima do pescoço. O olhar acompanha os movimentos do corpo, sempre para frente, olhar na altura dos olhos. E os braços, sustentando a massa de ar e brincando com ela, alongam a figura da bailarina que, no salto, ganha o terreno que antes não era seu. O cisne dança nas águas, poderia sumir no escuro do palco, tão negras as plumas, negras as pupilas. Mas o negro é a soma de todas as cores.
Fui ao cinema ver o Cisne Negro. Gosto de Natalie Portman, gostei do fato de ser a história de uma bailarina. Dançar sempre foi uma de minhas paixões, embora isso raramente tenha passado pela minha cabeça. Não posso, ou talvez vá podendo, enquanto escrevo, dizer do impacto que teve sobre mim o filme.
Nina é bailarina formada que vai se candidatar, entre outras de sua categoria, a dois papeis no ballet Lago dos Cisnes, de Tchaikowsky: o do cisne branco e o do cisne negro.
Na peça, uma dançarina vive presa dentro do corpo de um cisne, o branco. Só poderá ser libertada se seu amado vier lhe salvar. Surge o amante, mas o cisne negro o seduz, sensual e hábil. Fica a dançarina presa no corpo do cisne branco. Desesperada, se lança do abismo.
Fazer os dois cisnes, o branco e o negro, é o desafio de Nina, que passa no teste e ganha os papeis. A doçura característica da ave branca, a subserviência, a amabilidade, a leveza, a beleza, são fáceis de interpretar. Mas a vida selvagem que mora no cisne negro, seu poder de sedução, irreverência, desobediência e liberdade, confrontam a existência da própria Nina, até então uma jovem que se dedicou de alma e corpo ao ballet, filha única de mãe sozinha que através da jovem realiza o próprio sonho frustrado da dança, e para ela vive, totalmente. Os anseios de Nina, seus desejos mais selvagens, o germe da liberdade escondido nela e que agora quer se libertar de seu corpo, tal como a dançarina no ballet, parecem incompatíveis com sua rotina, o relacionamento com a mãe e consigo própria, e raramente lhe passaram pela cabeça.
Diz o coreógrafo: para o branco, és a melhor. Para o negro, terás de te deixar levar.

Ela quer. E não aguenta mais não ser livre.

Quer vencer a si, e si quer vencê-la. É o jogo que só se pode dar dentro da mesma pessoa. A única vitória é ser quem ela é.

Que a dança resulte magistral, pouco importa.
Esta lhe faz viver. Ei-la!


                                                                                                                           *Cisne negro, em latim.
 
Publicado em minha coluna Sapatos Magnéticos, do site http://www.superbem.com/ , da Clínica Verri.

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